quarta-feira, 6 de maio de 2009

Rasga essa pele,
Eu rasgo a porra da minha.
Estende-a rasgada sob os meus pés,
Esconde com ela o meu estigma.
Arranca-me a carne como se fosse
O fruto proibido,
Lava as feridas com o meu sangue.
Esventra-me, degola-me, rasga-me, bebe-me.
Cega-me, transforma-me, esconde-me de mim.

Viras-me as costas marcadas a fogo
Sem ousares olhar para trás,
Sabendo que me vais encontrar como sempre estive...

Indiferente.


Pele

As unhas mergulhadas
No vermelho vivo do sangue.
Suja de mim.
A pele rasgada do que era.
De todas as que fui.
De todos os que quiseram
Fazer-me ser o retrato da parede.
Rasguei todas as máscaras.
Não sou.

Fugaz

A fugacidade do tempo
No emaranhado dos cabelos.
O gesto que se demorava,
Como que a ignorar que existia fim.
As palavras eram todas as que cabiam
Num abraço de cabeça junto ao peito.
O tempo fugia-nos entre os dedos entrelaçados
Mas não quisemos ver que já tinha ido embora.
Partiste.
E o tempo parou.

Toque

Nascemos de um sorriso.
Esquecemos as palavras que imaginámos já saber de cor.
Do toque nasceu o cerrar das pálpebras, e dele o beijo.
Não como se fosse o primeiro, mas como se apagasse
Todos os errantes que vieram antes dele.
O céu, o frio que nos desprendia do que éramos
Para nos tornar no que queríamos ser juntos.
O toque que nos relembrava os nossos traços
E lhes tirava o peso dos anos arrastados
Tornou-nos actores que não estavam a representar
Como se, naquele momento, tudo fosse real e sentido,
Mesmo que essa realidade não se arrastasse pelo tempo.

Espinhos

Atiraste-me com palavras como se fossem rosas.
Deixaste-me procurar o seu aroma na noite,
Através do toque das pétalas.
Permitiste que o aroma delas se misturasse já com o meu.
Um dia deixei de o sentir.
Procurei-o em vão.
Quando abri os olhos, vi jorrar o sangue que o apagou,
Néctar dos espinhos que fingi não ver.

sábado, 29 de março de 2008

estilhaço

Vivia na sombra de uma grande árvore, do outro lado dos sonhos.
Habituou-se desde cedo a vê-los da janela. Eram grandes e sorriam-lhe, com o brilho ofuscante dos primeiros raios de sol da manhã.
Nunca teve de os procurar pelo meio das árvores. Estiveram sempre ali, a brincar do outro lado do rio.
Rebolavam na relva, chafurdavam na lama, escondiam-se por entre as flores.
Eram grandes, e voavam, e ela via-os do outro lado do rio.
Sorria-lhes, com o sorriso aberto de uma criança que ainda não sabe que já quase não há fadas nem princesas e que as bruxas más tomaram conta do mundo.
Sorria-lhes, e o sorriso que lhe entregavam bastava-lhe para sentir que iam estar sempre ali, mesmo à frente da sua janela.
De vez em quando sentia passos pesados aproximarem-se. Conhecia-lhes os passos, conhecia-lhes o cheiro.
Os passos pesados, de cara séria, vinham e fechavam-lhe a cortina.
Diziam-lhe que não podia ficar ali a ver os sonhos correr sem ninguém que os mandasse parar.
Que um dia também ela ia ser séria e afastar alguém da janela que dava para os sonhos.
Mas ela não queria saber de outra janela. Aquela era a sua janela, a melhor janela, a que via mais sonhos, maiores e com mais brilho.
Um dia voltaram, e os passos já não eram tão pesados.
Vieram, e não lhe fecharam as cortinas.
Disseram-lhe que os sonhos às vezes voavam tanto que deixávamos de os ver, que tínhamos que correr atrás deles.
Não achou que fosse preciso. Afinal os seus sonhos tinham estado sempre ali, e se os quisesse apanhar bastava abrir a janela.
Continuou a ver os sonhos, do outro lado do rio.
Os passos pesados vinham cada vez menos vezes, e os sonhos pareciam cada vez mais.
Um dia olhou tanto que para um que ele cresceu. Cresceu e parecia maior que todos os outros.
Brilhava tanto que os outros já nem pareciam existir, como parece não existir sono quando olhamos o céu à espera que uma estrela brilhe mais que as outras.
Viu-o ficar tão grande e voar tão alto que achou que talvez tivessem razão e ela tivesse que correr atrás dele para o apanhar.
Bateu no vidro, berrou, gritou-lhe que esperasse, chorou, desistiu.
Ganhou coragem e fechou a cortina de vez, soube que nunca mais se ia sentar naquela janela.
Soube que tinha que correr atrás deles e, quando o soube, já todos tinham fugido.
Perdeu o caminho dos sonhos.
Sem bússola, mapa ou guia, teve medo de não os voltar a encontrar.

(…)