sábado, 29 de março de 2008

estilhaço

Vivia na sombra de uma grande árvore, do outro lado dos sonhos.
Habituou-se desde cedo a vê-los da janela. Eram grandes e sorriam-lhe, com o brilho ofuscante dos primeiros raios de sol da manhã.
Nunca teve de os procurar pelo meio das árvores. Estiveram sempre ali, a brincar do outro lado do rio.
Rebolavam na relva, chafurdavam na lama, escondiam-se por entre as flores.
Eram grandes, e voavam, e ela via-os do outro lado do rio.
Sorria-lhes, com o sorriso aberto de uma criança que ainda não sabe que já quase não há fadas nem princesas e que as bruxas más tomaram conta do mundo.
Sorria-lhes, e o sorriso que lhe entregavam bastava-lhe para sentir que iam estar sempre ali, mesmo à frente da sua janela.
De vez em quando sentia passos pesados aproximarem-se. Conhecia-lhes os passos, conhecia-lhes o cheiro.
Os passos pesados, de cara séria, vinham e fechavam-lhe a cortina.
Diziam-lhe que não podia ficar ali a ver os sonhos correr sem ninguém que os mandasse parar.
Que um dia também ela ia ser séria e afastar alguém da janela que dava para os sonhos.
Mas ela não queria saber de outra janela. Aquela era a sua janela, a melhor janela, a que via mais sonhos, maiores e com mais brilho.
Um dia voltaram, e os passos já não eram tão pesados.
Vieram, e não lhe fecharam as cortinas.
Disseram-lhe que os sonhos às vezes voavam tanto que deixávamos de os ver, que tínhamos que correr atrás deles.
Não achou que fosse preciso. Afinal os seus sonhos tinham estado sempre ali, e se os quisesse apanhar bastava abrir a janela.
Continuou a ver os sonhos, do outro lado do rio.
Os passos pesados vinham cada vez menos vezes, e os sonhos pareciam cada vez mais.
Um dia olhou tanto que para um que ele cresceu. Cresceu e parecia maior que todos os outros.
Brilhava tanto que os outros já nem pareciam existir, como parece não existir sono quando olhamos o céu à espera que uma estrela brilhe mais que as outras.
Viu-o ficar tão grande e voar tão alto que achou que talvez tivessem razão e ela tivesse que correr atrás dele para o apanhar.
Bateu no vidro, berrou, gritou-lhe que esperasse, chorou, desistiu.
Ganhou coragem e fechou a cortina de vez, soube que nunca mais se ia sentar naquela janela.
Soube que tinha que correr atrás deles e, quando o soube, já todos tinham fugido.
Perdeu o caminho dos sonhos.
Sem bússola, mapa ou guia, teve medo de não os voltar a encontrar.

(…)

3 comentários:

Fábio Eusébio disse...

Fiquei com água na boca para o que aí virá a seguir.

"Disseram-lhe que os sonhos às vezes voavam tanto que deixávamos de os ver, que tínhamos que correr atrás deles."

Não resisti a pôr este excerto no meu msn. ehehe

;)


ps: sou o 1º! Sou o 1º! :D

Anónimo disse...

aprecio a tua sensibilidade, e essa historia da cortina é me familiar... de qualquer forma nao precisamos de mapas para nada, há sempre algo que nos guia...
beijozzz

samuel

Guilherme F disse...

Que bonito ^^ *